O Uncle Bob (aka Robert C. Martin) publicou um post onde ele diz que o que pode matar o waterfall pode matar o agile. Ok, você já vai pensar, mais um com o velho discurso de que a agilidade está a perigo. Eu pensei isso, mas fui ler; respeito o que ele diz, gosto da maneira que ele costuma colocar as coisas. Ainda que nos últimos anos ele só faça umas três palestras diferentes com pequenas variações e fale sempre a mesma coisa (assim como a maioria dos caras que ficaram importantes demais nos últimos dez anos na carona da agilidade).

Se você não leu ainda vá lá ler. Eu vou dar uma resumida rápida e comentar depois, e é melhor ler direto do que ler eu dizendo o que o ele disse. São só 4 páginas. Mas não vou só resumir, vou dar minha opinião sobre a raiz do problema que ele levanta. Se você leu o artigo, pule os próximos quatro parágrafos.

Ele disse que o waterfall nasceu torto, fruto de uma leitura capenga de um artigo, o que é verdade. Ele dá sua opinião, que eu concordo, dizendo que na época do waterfall (que ainda sobrevive dos restos dos projetos que os bons programadores se recusam a trabalhar) foi criada uma separação entre os que faziam análise, design e arquitetura e os programadores, sendo que os primeiros são vistos como mais importante, e os segundos força bruta, barata e menos educada responsável por transformar em realidade o que os primeiros conceberam. No sucesso, os analistas levavam os créditos, nas falhas, os programadores. Da mesma forma, o waterfall concebeu o gerente de projetos, que também é mais importante e só aparece no sucesso.

Aí surgiu o agile, onde o software funcionando e as pessoas são mais importantes, e a separação entre analistas e programadores morreu, e o gerente de projetos sumiu, dando espaço ao coach. O waterfall está a caminho da extinção por causa desta evolução natural.

E é tudo verdade, nada disso está errado, estamos mesmo em processo de obsolência do waterfall. Ele ainda vai durar muitos anos, porque uma estrutura de controle e poder se sustenta nele, e isso impede que as empresas limpem seus projetos, removendo um processo inadequado, porque há forças políticas atuando a favor do status quo.

E ele conclui dizendo que agora os ScrumMasters, que deveriam atuar como coaches, ajudando os times a serem melhores sem gerenciá-los, estão no caminho oposto. Segundo o Uncle Bob, os SMs vem em grande parte com um background de gerente de projetos, e estão buscando um selinho a mais com a certificação, além de uma justificativa para continuar com seus velhos hábitos. E boa parte da culpa desse processo todo é da certificação, que nasceu como CSM, e agora há o Professional ScrumMaster (PSM). O Scrum estaria trazendo de volta, com o ScrumMaster e as certificações, o antigo elitismo. Sua conclusão final é que ele espera que quando o Scrum morrer, que não leve junto toda a agilidade.

Não quero falar que as certificações do Scrum ajudaram (e ajudam) a agilidade a alcançar mais longe, ajudaram a popularizar o Scrum, e como consequência a agilidade como um todo, e que se temos hoje a agilidade no mainstream, em boa parte devemos isso ao Scrum e suas certificações.

Não quero falar que certificações não garantem competência, só conhecimento, e que qualquer empresa que compra um certificado cegamente vai falhar miseravelmente. Também não quero falar que eu não estou nem aí para estas empresas até que elas demonstrem alguma vontade de mudar.

O que eu quero falar é que o Scrum e a agilidade não vão morrer. Ainda que 85% das empresas que se dizem ágeis usem Scrum (segundo o Forrester Research), Scrum e agilidade não são a mesma coisa. E isso não faz diferença, porque o Scrum não vai morrer, não antes do Uncle Bob, pelo menos. O Scrum não vai deixar de ser uma ótima forma de começar uma mudança organizacional, uma forma de uma empresa encarar melhor seus problemas e trabalhar direito. Não é a única, nem sempre é a mais adequada, mas isso não significa que vai morrer.

Profissionais ruins sempre vão existir, com ou sem certificação. Uma pessoa pode dizer que conhece Scrum ou XP, e não conhecer nada. E isso não quer dizer que o Scrum ou o XP vão morrer.

O elitismo que o Uncle Bob aponta, e que de fato existe, não tem sua raiz nas certificações. As pessoas já eram elitistas antes de se certificarem, e muitas continuarão sendo após se certificarem. O problema do elitismo é social, é um problema de educação. O fato de algumas empresas contratarem profissionais certificados ruins é porque seu processo de seleção é ruim, e isso também poderia acontecer com ou sem a existência da certificação. Pelo menos com a certificação, os profissionais certificados e ruins vão todos parar nas empresas ruins, e aquele que ostenta o certificado como mais importante que as comprovações de competência fica indisponível. Isso é bom para as empresas boas que não se arriscam com o aventureiro. Isso pode dar um nome ruim ao Scrum e à agilidade? Sim, pode. Mas não mais do que seria sem a certificação. Uma empresa pode tentar uma mudança com XP e falhar por diversos problemas (inclusive incompetência e elitismo), e colocar a culpa no XP. E não há certificação de XP.

A raiz da questão, que o Uncle Bob falha em apontar (e por isso acaba por criar um artigo pela metade), está em outro ponto, não abordado. A raíz do problema do elitismo está na cultura das empresas e das pessoas, que querem adotar a nova sigla da moda, seja ela Scrum, XP, agilidade, xDD, ou qualquer outra, sem mudar. Elas fizeram isso muitas vezes anos atrás, e acham que agora é igual – só que não é. Não é possível adotar Scrum e manter uma cultura elitista e de comando e controle. Ou XP. Ou FDD. Ou Crystal. A raiz do problema está nas pessoas. Se queremos menos elitismo, menos comando e controle, mais colaboração, menos desperdício, temos que educar as pessoas. Só que existe um problema: estas pessoas tem que querer mudar, genuinamente. E isso demora, toma tempo, é uma mudança que acontece de uma geração para outra, não em apenas alguns anos. E, pelo visto, algumas pessoas estão frustradas com essa lentidão natural.

A associação que o Uncle Bob faz é fruto de uma correlação: muitos profissionais elististas são certificados, portanto a certificação é ruim. É uma falácia lógica. Para a conclusão ser real, precisamos de uma relação de causa e efeito, ou seja, a certificação causa o elitismo, algo que claramente não é provado e é inclusive falta de bom senso. Qualquer economista enxergaria isso a quilômetros de distância.

Como resolver o problema do elitismo então?

Para estimular essa mudança podemos fazer congressos, artigos, posts em blogs (como esse), e, acima de todos os outros: dar o exemplo. E sempre tendo em mente que todo esse esforço vai apenas estimular a mudança, e não fazê-la acontecer do dia para a noite.

Ao mesmo tempo, devemos combater os profissionais que só querem mais um selinho. Eu faço isso pessoalmente em toda consultoria que realizo, em todo curso que dou que pode levar a uma certificação. É minha responsabilidade deixar claro que é uma mudança difícil, e deixo claro para os profissionais que amam o status quo que eles nunca vão ser ágeis se não mudarem, e que não devem nunca dizer que são até que mudem. E sim, eu digo isso aos meus alunos, quem já fez curso comigo e já teve um destes na sala de aula já viu. Eu não ministro cursos só por dinheiro, mas para promover mudança, algo muito mais importante.

Devemos deixar claro também para as empresas que não querem mudar que a agilidade não é para elas, mas que se, em algum momento, elas estiverem interessadas de verdade em serem melhores, que estamos disponíveis para fazer isso acontecer. Elas tem que entender claramente que XP não é um quadro branco e alguns post-its. Scrum não é fazer reuniões todos os dias para cobrar o time.

O papel de todos que sabem o que é agilidade é deixar claro o que é ser ágil, e o que não é. Sem medo. Isso deve ser feito com cuidado e tato a fim de evitar um desconforto maior do que o necessário, ainda que algum sempre vai existir.

Você que me lê, cumpre seu papel?

Giovanni Bassi

Arquiteto e desenvolvedor, agilista, escalador, provocador. É fundador e CSA da Lambda3. Programa porque gosta. Acredita que pessoas autogerenciadas funcionam melhor e por acreditar que heterarquia é mais eficiente que hierarquia. Foi reconhecido Microsoft MVP há mais de dez anos, dos mais de vinte que atua no mercado. Já palestrou sobre .NET, Rust, microsserviços, JavaScript, TypeScript, Ruby, Node.js, Frontend e Backend, Agile, etc, no Brasil, e no exterior. Liderou grupos de usuários em assuntos como arquitetura de software, Docker, e .NET.