Gandhi rompeu o status quo e mudou o mundoDesde sempre aprendemos que temos que ser obedientes. O conceito vem do berço, temos que obedecer pai e mãe. É um preceito bíblico, ainda mais fortificado no maior país católico do mundo. Desobedecer é um problema.

E eu concordo, desobedecer é de fato um problema. Mas não concordo pelos mesmos motivos.

O conceito de obediência pressupõe que alguém sabe algo que deve ser feito. Só que esse algo não vai ser feito por quem sabe, mas por outra pessoa, que tem realizá-lo de acordo com a expectativa de quem sabe. Tem que obedecer.

Por exemplo, os pais ensinam que o chão é sujo, e uma criança, após deixar cair um doce no chão pega ele de volta e coloca na boca. Ela desobedeceu os pais. Quer dizer, a imensa maioria dos pais vai entender que a criança foi desobediente. Será que foi? Voltamos nisso mais pra frente. A questão é que quem devia fazer a coisa (nesse caso não fazer) é a criança, e quem sabia que ela devia (ou não devia) fazer são os pais. Quem diz o que fazer e quem faz são pessoas diferentes.

Vendo isso fica claro que o conceito de obediência vai diretamente contra a ideia de autoorganização. É impossível que um time seja autoorganizado e obediente. Se ele obedece, ele restringe sua autoorganização, já que está atendendo à organização de um ente externo ao time.

O próprio conceito, diante disso, é doente quando falamos de autoorganização. Obediência e autoorganização não coexistem. O que existe é autodisciplina, muito diferente de obediência. É uma força interior que empurra cada um a fazer o melhor.

No cenário da criança novamente, devemos buscar que ela tenha autodisciplina e entenda que por mais prazer que o doce lhe dê, há um grande risco de ficar doente se comer do chão. E isso é um problema de educação, não de obediência. Em troca da educação correta, a punição decorrente da desobediência é uma muleta que esconde a própria dificuldade de quem deveria estar educando. Neste caso os pais.

No caso de nossa industria, os líderes deveriam ocupar o papel de educadores. Lideres estes que frequentemente ocupam posições de poder. Como com frequência não são bons educadores, e portanto não são bons líderes, a obediência passa a ser valorizada e vista como única forma de garantir atendimento às normas.

(Em tempo, comparar uma criança com um desenvolvedor adulto é puramente didático. Com o aprendizado vem a responsabilidade e a autonomia merecidas, que florecem no adulto.)

No entando, ainda que obediência garanta algum resultado, ela tem o grande problema de alienar. Quem obedece não pensa. E quem não pensa não é capaz de produzir software com a mesma qualidade que um profissional produziria. Desenvolvimento de software é uma atividade cognitiva, criativa e colaborativa. É preciso romper limites, algo inconcebível a quem se acostumou a viver dentro do status quo.

Autonomia e liberdade também são conceitos que sofrem em times obedientes. Autonomia vem de liberdade e da possibilidade de assumir responsabilidade sobre os resultados, bons ou ruins. É ela que traz também o comprometimento, tão em falta nos dias de hoje. E um time obediente não tem responsabilidade alguma além de trabalhar de acordo com o que foi especificado.

Estes conceitos se expandem além do individuo. Assim como uma pessoa pode ser obediente com seu gerente, um time pode ser com um PO, uma empresa com um cliente. São círculos concentricos, calcados na mesma cultura corporativa.

Inovação pede criatividade. E não nasce em um ambiente desobediente ou obediente, mas de um ambiente onde esse conceito sequer existe, e empurrar os limites do passado faz parte do presente.

Giovanni Bassi

Arquiteto e desenvolvedor, agilista, escalador, provocador. É fundador e CSA da Lambda3. Programa porque gosta. Acredita que pessoas autogerenciadas funcionam melhor e por acreditar que heterarquia é mais eficiente que hierarquia. Foi reconhecido Microsoft MVP há mais de dez anos, dos mais de vinte que atua no mercado. Já palestrou sobre .NET, Rust, microsserviços, JavaScript, TypeScript, Ruby, Node.js, Frontend e Backend, Agile, etc, no Brasil, e no exterior. Liderou grupos de usuários em assuntos como arquitetura de software, Docker, e .NET.